Documentário “Poetas do Tambor”, de Ricardo Augusto Pereira e Roberto Pereira, é lançado
O documentário “Poetas do Tambor”, de Ricardo Augusto Pereira e Roberto Pereira, acaba de ser lançado e de cara faz uma correção histórica: a região dos Cocais do Piauí é um dos maiores redutos do Tambor de Crioula, expressão cultural precipitadamente registrada pelo IPHAN apenas como bem cultural exclusivo do Maranhão. O filme foi feito entre 2017 e 2023, como desdobramento do livro de Ricardo, também chamado Poetas do Tambor, de 2020. Esta obra cinematográfica demonstra como a África brasileira ainda pode ser encontrada nos mais recônditos espaços sociais.
O Tambor de Crioula é carregado de forte simbolismo nas narrativas de seu mito fundador. Os Tambozeiros, Baiadores e Baiadeiras, nomes com que os detentores dessa manifestação se identificam, narram que o Tambor de Crioula vem do “começo do mundo”, e que foi abençoado por São Pedro e Jesus, que não só baiaram, como também beberam da cachaça, bebida-combustível da brincadeira. Trata-se de um mito fundador com narrativa inteligente, pois legitima um bem cultural movido a batidas de tambores incessantes de mãos negras. Utilizar signos católicos numa sociedade estruturalmente racista parece ter sido uma ferramenta de legitimação estratégica de permanecer e resistir, a fim de que a perseguição das elites brancas brasileiras do interior do Piauí diminuísse ou cessasse.
O documentário dos irmãos Ricardo e Roberto é uma verdadeira obra-prima, na medida em que retrata cirurgicamente como se dá a dinâmica do Tambor de Crioula do Piauí nos dias de hoje. Cada cena desperta uma emoção diferente, pois o expectador se depara com a realidade do sertanejo negro que pratica esta expressão. Assim, ao longo de 1h20min é possível observar que o Tambor de Crioula acontece de forma inteiramente artesanal.
Da feitura do tambor, confeccionado pelas próprias mãos de quem nele bate, passando por casas de taipa cobertas com palhas, até o terreiro onde a função acontece, tudo parece acontecer numa grande aliança cosmológica com a natureza. Nada da brincadeira vem de origem industrial, tudo é feito manualmente. Com exceção da cachaça, Mangueira, de preferência. Nesse sentido, os cineastas tiveram o cuidado de documentar como se dá a produção do tambor, numa sequência de cenas tocantes.
A batida dos tambores não cessa. A cachaça alimenta o espírito de quem dança e a inspiração de quem versa. Poetas improvisam de forma decidida, com a cara fechada, desafiando em versos seu oponente. As batidas do tambor entronizam nos corpos de tal maneira que a simetria da dança com os toques percussivos é altamente impressionante. Não pode ser outra coisa a não ser a África sertaneja do Brasil.
Mãos calejadas proferem batidas firmes nos tambores artesanais. Uma verdadeira arte de sequência rítmica sai daquelas mãos que parecem ter independência corporal, como se tivessem vida própria. Com tamanho esforço físico, o suor do tambozeiro escorre pelo corpo inteiro. É como se a agilidade do movimento feito com as mãos correspondesse à força interior de cada tambozeiro para vencer as dificuldades sociais impostas pela realidade que vive.
Não há Tambor de Crioula no Piauí sem cachaça, “se não tiver cachaça, não dá, o serviço é pesado”, narra um. Cantadores entoam cantigas como que em transe, cabeça em sentido diagonal, olhos cerrados, bradando: “quando tô bebo, tenho muita rima”, diz outro.
No Tambor de Crioula do Piauí, os tambozeiros são quase todos homens. Já na dança, o homem baia sem a presença da mulher e a mulher baia sem a presença do homem. Essa característica do ritual fortalece o mito fundador de que esta seria uma brincadeira abençoada por Jesus, já que homens e mulheres não se tocam. A dança é um fenômeno à parte. Se a percussão do Tambor de Crioula é África, a dança materializa ainda mais a cultura africana desta expressão. Pés pisam firme no terreiro em movimentos corporais que acompanham com exatidão as batidas do tambor. É como se baiassem ao ritmo dos obstáculos da vida, rompendo cada um deles com agilidade, inteligência e irreverência. Embora homens e mulheres não dancem juntos, a presença feminina é fundamental para manter a chama dos tambores acesa: “Com mulher, a gente vence uma noite e não damo fé”.
No baculejar do tambor, cantigas são entoadas a plenos pulmões:
“Essa nêga qué baiá”
“Baiadô baiô na eira / Eu cheguei na brincadeira”
O mito fundador do Tambor de Crioula do Piauí também inclui a narrativa de que, após a abolição da escravatura do Brasil, em 22 de março de 1888, pretos forros vibraram de tanta felicidade que ficaram 3 dias e 3 noites batendo tambor sem parar, quando teria nascido o Tambor de Crioula piauiense. Ou seja, esta manifestação teria surgido do século 19. E a realidade social dos detentores do Tambor de Crioula parece também ser a mesma do século 19, já que vivem numa carência material que destoa muito da riqueza cultural que representam. Outro fato que parece remeter ao século 19 é a exigência absurda que os delegados de polícia da região dos cocais fazem para que o Tambor de Crioula aconteça: a cobrança de uma taxa de cerca de R$ 80,00 referente a uma licença que permite a brincadeira ser feita. Um atraso civilizatório sem tamanho, uma repressão cultural que precisa ser abolida o mais rápido possível.
Uma das várias baias de Tambor de Crioula filmada pelos irmãos Pereira começa de noite e termina apenas quando a barra do dia aponta, ou quando todos pegam o sol com a mão. A força dos tambozeiros e dos baiadores e baiadeiras é impressionante e relatos dão conta que eles apenas conseguem se manter firmes no terreiro com o auxílio de baiadores, baiadeiras e tambozeiros que já deixaram o plano físico, mas que permanecem no plano espiritual, fortificando aquelas mãos que parecem não querer descanso nem temer a nada. É o “encanto na boca do tambor”, citado por um deles, numa referência à ancestralidade do Tambor de Crioula.
Ricardo Augusto Pereira, historiador do IPHAN, já iniciou processo junto ao próprio IPHAN para que o Tambor de Crioula do Piauí seja considerado Patrimônio Cultural Brasileiro. Ou seja, para que justiça seja feita e os tambozeiros, baiadores e baiadeiras piauienses deixem de ser invisibilizados pelo Estado e possam fazer parte de planos de salvaguarda que facilitam a continuidade desta manifestação cultural. Na verdade, não falta mais nada para o Tambor de Crioula se tornar Patrimônio Cultural Brasileiro, tudo já foi provado e comprovado, cabe ao IPHAN registrá-lo.
O documentário “Poetas do Tambor” inspira a entrar nesse Brasil adentro e conhecer mais e mais o que todos nós, brasileiros, não só desconhecemos, como ignoramos e insistimos em não ver. No Tambor de Crioula do Piauí, a África brasileira permanece viva.
“Te alevanta tambô grande / tu caiu, mas não morreu”.